Que bom saber que não somos os únicos a lutar contra a gentrificação... palavra essa bem nova para alguns ouvidos. Nós, como Associação de Moradores da Cidade Velha, acanhadamente, começamos a querer que isso não acontecesse no nosso bairro, mesmo antes que o IPHAN tombasse aquela área, em 2012, o que aconteceu depois que o arq. Paulo Chaves já a tinha embelezado, mudando assim a nossa memória histórica.
Relativamente a área urbana, na internet temos esta definição: “A gentrificação é um processo de transformação de áreas urbanas, geralmente bairros antes considerados menos valorizados, que passam por revitalização e atraem moradores de maior poder aquisitivo. Isso leva ao aumento do custo de vida e, muitas vezes, à expulsão dos miradores originais"
Mais adiante acrescentam : “A gentrificação é um processo socioespacial caracterizado pela valorizção acentuada de uma área urbana. Esse fenômeno contribui diretamente para o aumento da desigualdade.”
Após o tombamento pelo IPHAN aumentou a nossa luta em defesa do que sobrou da nossa memória histórica. As nossas leis falavam de salvaguarda, defesa, proteção, preservação e isso deveria acontecer através de “ações cruciais para a preservação da identidade cultural e memória de um povo”. Deveria envolver “medidas para garantir a permanência e viabilidade do patrimônio, incluindo sua identificação, documentação, proteção, promoção e valorização”.
Mesmo com tudo aquilo que se lia a respeito, começamos a ver o “colorimento” de casas na área tombada. Como não existia uma lei especifica proibindo a coloração das casa na área tombada, ignoraram o que as palavras “salvaguarda, defesa e proteção” queriam dizer e começaram a carnavalizar as casas da área tombada.
Não somente ignoravam as leis e o sentido das palavras, mas até a gestão participativa no processo de salvaguarda foi evitada. Os Planos de Salvaguarda que deveriam integrar o Programa Nacional do Patrimonio Imaterial (PNPI) ninguém, entre os possiveis interessados, viu. Assim até as calçadas de liós, são substituídas em frente a órgãos públicos, com toda tranquilidade.
Esse comportamento não pára na defesa do patrimônio histórico, vemos agora, esse “fenômeno silencioso”, paralelamente, se expandir em direção da cultura popular. Eis aqui uma explicação que nos dá Marcelo Bastos no Facebook:
A CULTURA ENLATADA E O BOI DE VITRINE:
O CASO DO PAVULAGEM E A GENTRIFICAÇÃO SIMBOLICA DE BELÉM.
Nos últimos anos, a cidade de Belém tem assistido a um fenômeno silencioso, porém brutal: a transformação da cultura popular em produto turístico domesticado. O Arraial do Pavulagem, outrora expressão viva do povo, virou vitrine para patrocínio, palanque eleitoral e selfie de influencer. E isso não é acaso. Trata-se da velha lógica do capital engolindo o simbólico e cuspindo enfeites de plástico. Pierre Bourdieu já nos alertava: a cultura, quando perde sua autonomia e se submete aos mecanismos de distinção e mercado, deixa de ser campo de resistência para virar espaço de consagração simbólica das elites (BOURDIEU, 1983).
Não se trata aqui de negar a importância do Arraial ou sua história. Pelo contrário. Ele nasceu das ruas, da juventude, do enfrentamento à caretice cultural e ao apagamento das tradições amazônicas. Mas o que se vê hoje é um espetáculo padronizado, embalado para exportação, com roteiro aprovado por edital. O povo continua lá, mas na borda. No centro do cortejo, está a indústria do entretenimento, não mais a expressão autêntica do brincar de boi. Como dizia Adorno, "a indústria cultural não produz arte, mas mercadoria estética para o consumo conformista" (ADORNO & HORKHEIMER, 1944).
Essa gentrificação cultural — onde práticas comunitárias são apropriadas, esvaziadas de conflito e revendidas como experiência — não é exclusiva de Belém. Mas aqui ganha contornos graves. Porque se vende como "resgate da tradição", quando na verdade mascara a exclusão. Os ribeirinhos, os negros, os trabalhadores da periferia, os mestres da cultura popular continuam sem palco, sem patrocínio e sem voz. Enquanto isso, DJs, designers de som e socialites culturais dividem a cena no Arraial gourmetizado da Cidade Velha.
A crítica não é moralista. Não se trata de dizer que cultura deve ser pura, ou que tradição não possa dialogar com o novo. Trata-se de reconhecer que há uma luta de classes simbólica em curso. Quando se retira o boi do bairro e se instala num palco cercado de tapumes com patrocinador estatal, o que se tem não é difusão cultural, é domesticação. É a conversão do sagrado em estética de evento. É a morte lenta da cultura viva.
A Escola de Frankfurt nos ensinou que a cultura de massa serve, sobretudo, para anestesiar. Ela transforma o diferente em familiar e o insubmisso em decoração. O Pavulagem, enquanto cortejo de rua, era espaço de tensão, improviso e invenção popular. Hoje, é peça de calendário oficial. Cabe na agenda do prefeito, no feed da influencer e no edital do banco estatal. Mas não cabe mais no coração do povo que dançava sem crachá, sem permissão e sem drone.
É curioso que, ao mesmo tempo em que o Arraial cresce como fenômeno midiático, outros folguedos somem. Cadê os cordões de pássaros? Cadê os bois de matriz quilombola? Cadê os mestres anônimos das margens dos igarapés? Silenciados. Porque não se enquadram na lógica do espetáculo. Porque não têm figurino Instagramável. Porque não servem à nova elite progressista que governa a cultura com sorriso de marketing e lógica de mercado.
Estamos vivendo um tempo em que a estética substitui a ética, e o aplauso substitui o pertencimento. Não basta que a cultura esteja presente — é preciso perguntar: de quem é? Quem a controla? Quem lucra? A gentrificação simbólica é isso: a ocupação dos espaços culturais populares por agentes hegemônicos, sob a retórica da valorização, mas com a prática da apropriação. E isso precisa ser denunciado.
Não se trata de atacar pessoas. O problema não é quem dança o boi com tênis importado. O problema é que o boi virou vitrine, não rito. Virou produto, não processo. A festa do povo virou foto de campanha. A cultura de rua virou contrato. Isso não é tradição. É pastiche. É espetáculo sob controle. É simulacro de um povo que ainda resiste, mas está sendo expulso da própria festa.
Resistir à gentrificação cultural é, hoje, um ato político. É defender que o boi volte para os becos. Que a música saia do palco e volte para os quintais. Que a tradição se reconecte com a vida real, não com o cronograma do marketing institucional. Como diria Adorno, a arte verdadeira é aquela que incomoda, que rompe, que nos tira do lugar comum. E talvez o nosso Pavulagem precise voltar a incomodar, antes que seja tarde.