segunda-feira, 25 de julho de 2016

Obrigada, Leandro Tocantins.


Acabei de ler no livro Santa Maria de Belém do Grão Pará, do Leandro Tocantins, segunda edição 1976, uma sugestão, que apoio totalmente.
Num momento em que as tradições alimentares, a nossa cultura alimentar é ameaçada de, não digo extinção, mas de manuseios não muito ortodoxos, é o caso de ler, no livro acima o artigo "Outros Pitéus" sugeridos pelo autor.
Reproduzo a parte principal do que ali escreveu e sufgeriu Leandro Tocantins, esse "cicerone apaixonado e enternecido" nascido em Belém em 1928.
A primeira edição deste livro é de 1963 e, ao menos para mim, essa sua proposta é ainda validissima. Leiamos: ....
"As vezes eu penso quanto seria de bom brasileirismo fazermos ampla divulgação das tradições paraenses, incluídas, é claro, as tradições culinárias. Habituar gente importante de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, a incluir pratos regionais amazônicos em seus almoços e jantares de recepção. Como se faz com os pratos baianos.
"Não é pedir muito. Somente um pequeno esforço de reabilitação de mais um valor regional brasileiro. Que coisa boa vermos (não só ver, mas sentir, provar, comer) mesa rica de paladares baianos e paraenses! Acarajé e abará junto ao casquinho de caranguejo, ao casquinho de muçuã; vatapá ao lado da maniçoba, chinchin de galinha perto do pato no tucupi; caruru e tacacá, muqueca de peixe e picadinho de tartaruga, mucunza´ e açaí.
"Cardapio um tanto explosivo para pessoas de estomago e vesicula delicados, mas deliciosamente brasileiro! Rica mesa que constituiria, também, ótima promoção (esta palavra está na moda) para as relações culturais inter-regionais do Brasil.
"Ora, por que não? Se muto paulista encantado pela Bahia já tem trazido, por empréstimo, quituteiras de S.ao Salvador para preparar almoços em Piratininga -almoços de que participaram Presidentes da Republica, Ministros, industriais, pintores, artistas de teatro e cinema, escritores.
"Antes, porém, é preciso começar a valorização culinaria pela nossa propria casa. O Governador do Pará e o Prefeito de Belém dariam boa mostra de "paraensismo" se decretassem: recepções oficiais, pratos regionais.
"Na Bahia este decreto está ha muito tempo promulgado e sacramentado em relação à "boa terra". Eu mesmo ja participei de um almoço no Palácio da Aclamação, quando o Governador e Senhora Juracy Magalhães receberam os estagiários da Escola Superior de Guerra, dentre os quais eu me incluia. Nunca vi tanto requinte na decoração "baiana" da mesa, tanta fartura de iguarias rigorosamente baianas.
"Certa vez, em uma das idas do Presidente Juscelino Kubitschek a Belém, o Governo do Estado ofereceu-lhe um jantar no Automovel Clube. Faziam parte da comitiva presidencial vários diplomatas estrangeiros que estavam curiosos por conhecer a estrada Belém Brasilia. Um deles, em palestra comigo, lamentou a falta de picadinho-de-tartaruga, de pato-no-tucupi, de casquiho-de-carnguejo. Perguntei-lhe se já havia provados os quitutes. Certainly, respondeu-me. I'm very fond of them!
"O complexo culinario dos "casquinhos" - de caranguejo, e muçuá - é uma especialidade tipicamente belemense. O caranguejo vem, às pencas, da zona do Salgado (contra-costa paraense) e o muçuã (tartaruguinha de menmos de um palmo) da ilha do Marajó.
Existem casas de familia em Belém que conservam nos armários casquinhos vazios, guardando como se guarda porcelana. Para tê-los a serviço dos pitéus a qualquer momento. Os casquinhos de muçuã, bem limpos à base de água e sabão. Os casquinhos de caranguejo, com douramento externo. Mais paraense é utilizá-los no estado natural, aproveitando-os como explica a receita ..."
"Outro quitute do caranguejo é a salada, ou caranguejo a vinagrete. Seu preparo é o mesmo do 'casquinho', no primeiro tempo. Em lugar de refogado, por somente limão, vinagre, azeite doce, pimenta-de-cheiro e pedacinhos de azeitona, servindo-a em prato comum, sem farofa. As "unhas", cheias de "polpa", enfeitam o prato, circulando o "desfiado". Não só enfeitam como são petisco, e tão bom que formam mais uma variedade culinária...
"Também fina iguaria é o arroz-de-caranguejo com coco: arroz cozido so no leite de coco, que se espalha num prato travessa, recebendo por cima boa camada de caranguejo desfiado, com o mesmo tempero do "casquinho'. alguns o chamam de caranguejo "a society'. Pessoalmente acho a denominação superficial e peante. Ora, numa terra em que tudo rescende a gostos e per fumes locais, adotar-se um prosaico americanismo para a identificação de prato ortodoxamente brasileiro-regional, chega a ser um sacrilégio" Como ficaria bem, chama-lo, por exemplo, de caranguejo à cunhã-mucu, palavra do indigena amazonico que traduz o nosso brasileirissimo brotinho!
...
"A respeito do casquinho-de-muçuã conta-se que o rei Leopoldo da Bégica, almoçando no Grande Hotel, em certo dia de outubro de 1962, pediu que lhe servissem o pitéu. À medida que ia tomando paladar o visitante belga dava mostras de aprovação. O casquinho-de-muçuã havia afinado com as suas preferência de gourmet. "Hum", disse ele, "isto me lembra o paladar da grenoville, preparada à maneira tropical".
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O livro em questão foi escrito ha mais de cinquenta anos e nesse meio tempo a tartaruga e o muçuã foram eliminados das nossas mesas. A extinção deles foi a preocupação principal pois enfeitavam os menus de restaurantes e as festas dos paraenses o ano inteiro.
Ficamos ofendidissimos quando isso aconteceu, principalmente quando descobrimos a quantidade de ovos de tartaruga que comiam os membros da Comissão demarcadora das fronteiras entre as terras de Portugal e Espanha na America do sul.
Corria o ano de 1750 quando foi emanado o Tratado de Madri confirmando que as terras da Amazonia eram de Portugal. Tornou-se necessario demarcar essas terras e foi decidido que os dois paises mandariam técnicos e engenheiros a tal fim.
Os técnicos escolhidos na Europa quais representantes de Portugal na comissão eram apenas 16, mas a expedição que saiu de Belem era composta por 1025 pessoas, das quais 511 eram indios. Lembrem que as canoas era a remo...
Mesmo se levaram dois anos se preparando para abastecer as 23 canoas grandes, dez das quais serviam de armazem e abrigavam também a Infantaria, tiveram problemas a respeito. Os patos e galinhas levados não foram suficientes e a pesca de peixes, tartarugas e seus ovos foram o grande suporte da viagem.
Eles sairam de Belém em direção de Mariuá, ponto de encontro com a Comissão espanhola, com bem cinco mil ovos de tartaruga armazenados. Em cada cidade que paravam, na verdade, missoes religiosas, tinham que ser abastecidos com comida e mais ovos de tartaruga, e elas também, iam para a canoa-armazem.
Levaram uns tres meses a bom comer ovo de tartaruga nessa ida ... é logico que ajudaram a beça na extinção desse quelonio, e nós que fomos privados. Vocês acham justo???? (kkkkkk)
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Agora me digam: quantas vezes foi usada a palavra 'gastronomia' no texto do escritor? O autor estava falando de comida regional, portanto de "cultura alimentar" autentica, não aquela para engambelar turistas... Até as receitas ele colocou para que ninguem inventasse nada, mas copiassem o original.
Lembrou dos almoços e jantares paraenses, com "casquinho" de todos os tipos e assim reviveu nossa saudade de comer o que Landi e seus colegas comeram mais de trezentos anos atras.
Depois dessa aula de brasileirismo, vocês ainda acham que é necessário uma escola de gastronomia com gente que nem é daqui??? Que nem sabe como se come tartaruga e menos ainda como se mata...e nem como se come seu ovo.