terça-feira, 28 de julho de 2009

UM DESABAFO

Os Flanelinhas e a Violência Nossa de Cada Dia

Somos cotidianamente bombardeados com tantas formas de violência que nem nos apercebemos mais da presença de muitas delas. Já nos é habitual considerarmos que sairemos para trabalhar e poderemos não voltar em virtude de uma bala “perdida” ou “achada”. Já nos acostumamos com a grande probabilidade de sermos mortos violentamente simplesmente por parar em um sinal de trânsito, a qualquer hora. Nem nos importamos com a violência transformada em espetáculo nas páginas dos jornais que “se espremer sai sangue”. Não nos indignamos mais por alguém ser morto na porta de casa ou dentro de um ônibus, em um assalto frustrado, ou um outro ser linchado no meio da rua - alguns até acham que, nessa hora, se faz justiça.
Se essas formas mais brutais de violência já fazem parte de nosso dia-a-dia a ponto de não mais questionarmos sua ocorrência, “é assim mesmo”, o que dizer então de outros tipos, mais sutis, embora não menos agressivos, de violência cotidiana? Há muito não nos sentimos mais violentados pela pobreza extrema das crianças e mendigos que nos pedem dinheiro em cada esquina, conformamo-nos em, ao sermos física ou psicologicamente pressionados, dar-lhes migalhas; não somos mais sensibilizados pela corrupção endêmica em todos os meios, fechamos comodamente os olhos às paralegalidades (ou as vezes flagrantes ilegalidades), ou não nos queixamos mais pela falta de resposta dos governos às mortes nos pronto-socorros, ao desvio das cestas básicas, às apropriações ilegais do bolsa família. Tudo isso é tão mais grave, tão mais violento, que a anestesia local, superficial, que desenvolvemos ao longo da vida já começa a se transformar, perigosamente, em uma anestesia geral.
Um exemplo concreto disso é a invasão e o domínio absoluto das vias públicas pelos flanelinhas. Não há uma só via em nossa metrópole que já não tenha sido loteada por e para alguém. Não há sequer uma rua em que se possa estacionar sem que se tenha de pagar para alguém “vigiar” o carro. Somos diuturnamente abordados por indivíduos, freqüentemente de robusto porte e face pouco amigável, que se apresentam para “guardar” nosso veículo, independente de desejarmos ou não tal serviço. A violência já se inicia na própria necessidade de que seu patrimônio, em via pública, precise ser “guardado” por alguém que não um agente do Estado; ela se manifesta fisicamente no indivíduo que o aborda, de perto ou de longe, com um sinal de mão ou um “aí patrão”, lhe garantindo que quando você retornar ele estará lá para lhe extorquir algum dinheiro, e ela se expande (perigosamente muitas vezes) quando o que você lhe dá não é de seu agrado. O constrangimento e o medo são inegáveis nos olhos das pessoas, principalmente das mulheres, ao entrarem em seus carros, em qualquer ponto da cidade, e procurarem freneticamente em suas bolsas uma quantia adequada para dar ao homem mal encarado que segura a sua porta ou a olha ameaçadoramente através da janela. Quem nunca se sentiu acuado? Ele nada faz, por nada se responsabiliza, não tem nenhuma obrigação, mas quer sempre receber.
Quando você ousa argumentar com algum deles sobre a necessidade de pagar para estacionar na via pública, é imediatamente informado de que ele tem “família para sustentar” e que precisa dividir seu ganho com o “dono do ponto”. O dono da rua existe, e não é o Estado: é alguém que se apossa do bem público, e privatiza e terceiriza a exploração do espaço coletivo. Ele ganha entre R$ 100,00 e R$ 300,00 por dia, ou mais, em pontos privilegiados. Nem é preciso pesquisar muito para saber que o dono daquele pedaço é um “senhor aposentado” “policial” ou “ex-policial”, que passa de carro ao final de todos os dias para recolher o que lhe é devido pelos seus 5 ou 6 “empregados” flanelinhas. Ele controla com pulso firme seu negócio; o ponto todo vale muitos mil reais, e quem não pagar a diária.... A gente não conhece o “mundo da rua”, explicou-me um deles. Experimente sair sem pagar. Com muita sorte, e se não precisar estacionar lá novamente, ouvirá muitos palavrões; com menos sorte, possivelmente uma cuspida, um risco em seu carro, talvez uma agressão física.
Ninguém questiona a existência dos “donos das ruas”, não se sabe sequer quem e quantos são, ninguém se pergunta sobre o destino do “trocado” que dá ao guardador, ninguém conhece a ficha criminal dessas pessoas, ninguém mede o impacto da extorsão cotidiana na sua mente e no seu bolso, ninguém questiona a legalidade dessa atividade e suas possíveis ligações com outras ilegalidades, como o furto, o assalto, a prostituição de menores e o consumo e tráfico de drogas e de armas. Nossa anestesia nos está paralisando e anestesia, em doses elevadas, leva à morte.
Como tantos, também não aguento mais ser vítima em minha própria casa, ou rua. Se é necessário alguém para guardar os nossos carros parados nas vias, então que se estabeleça um sistema de parquímetros, uma vez que os vários esquemas de “vaga certa”, “faixa azul” etc nunca funcionaram. Pelo menos assim se terá a quem reclamar na próxima vez que seu som for roubado. Por outro lado, se o Estado considera que já garante a segurança nas vias públicas, então que atue e retire pelo menos essa violência de nossas ruas.
Considerando o momento atual, sugiro aos nossos vereadores e deputados que constituam uma CPI dos flanelinhas, para apurar por quê o poder público nada faz contra essa violência e sugerir medidas para que nossas ruas sejam, de fato, mais seguras. CHEGA DE VIOLÊNCIA!

Hilton P. Silva
Fone: 8867-8728
hdasilva@ufpa.br