Por João Guató
A PRIMEIRA PRISÃO DE BOLSONARO
Foi neste 18 de julho, um dia comum no calendário das nações, que o Brasil discretamente marcou sua história com a cerimônia silenciosa de uma tornozeleira eletrônica. O ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, o homem do grito sem verbo, da pátria sem livro, do governo sem ternura, acordou com o pé marcado — pela primeira vez, preso.
Não houve camburão. Não houve algema. Mas houve o que importa: a ferida no tornozelo da impunidade.
O gesto não é simbólico, é histórico. A tornozeleira, para além de metal e rastreamento, é a confissão pública de que até os intocáveis podem ser tocados. Pela primeira vez desde que deixou o Planalto — e talvez desde que entrou na vida pública — Bolsonaro foi oficialmente detido. Não com estardalhaço, mas com a discrição dos fatos irrevogáveis.
Durante anos, o país assistiu a um presidente que zombou da dor, que gargalhou de caixões, que flertou com o vírus e fez da morte política uma forma de gestão pública. Um homem que governou por negação: negou a ciência, negou a democracia, negou a história e, por fim, negou até o próprio passado, como quem tenta apagar pegadas no barro molhado da memória nacional.
Não foi apenas um presidente — foi um estado de espírito. Um mal-estar em carne viva. E por isso sua primeira prisão é também a nossa primeira respiração em muito tempo.
Dizem que a democracia é o regime das instituições. Mas ela também é o regime dos gestos. E o gesto de hoje é um sussurro que grita: o tempo da irresponsabilidade talvez esteja no fim.
Não é pouco. Há algo de reparador — e quase poético — em ver o homem que quis trancar o Brasil dentro de um delírio agora confinado em horários e zonas geográficas. Um toque de recolher imposto ao apóstolo da desordem.
A tornozeleira em Bolsonaro não é um adorno jurídico. É a primeira prisão — ainda que o corpo esteja solto, o símbolo está capturado.
Porque o que se prende, neste gesto, é o mito. É o artifício de um homem que se vendeu como “salvador”, enquanto salvava apenas os próprios filhos, aliados e fantasmas.
Bolsonaro não foi um erro isolado. Foi a febre que revelou a infecção. E hoje, ao vestir o sinal de que está sob vigilância, o Brasil sussurra para si mesmo que talvez, só talvez, comece a sarar.
Claro, há quem ache que tornozeleiras são mimos, que sem cela não há punição. Mas esse raciocínio esquece que o autoritarismo se alimenta do mito da invulnerabilidade. E quando o mito é tangido por ordens judiciais, monitorado por GPS, obrigado a estar onde não quer — o mito racha.
Hoje, Bolsonaro foi preso. Não como desejariam seus adversários mais febris. Mas do modo que mais o fere: em silêncio, sem manchete, sem glória. Apenas com a crueza burocrática dos autos.
A elite brasileira que pariu Bolsonaro não o fez por engano, mas por cálculo. Bancos, agronegócio, construtoras, corporações de fachada liberal — todos colheram os frutos amargos plantados com sementes públicas: isenções, desonerações, perdões fiscais, crédito subsidiado e blindagem institucional.
O discurso era o do Estado mínimo, mas o saque foi máximo. Sob o falso manto do "livre mercado", multiplicaram-se lucros enquanto se estiolavam as políticas sociais, o SUS era vilipendiado, a ciência desidratada e a educação entregue aos falsos profetas do empreendedorismo de palco. A elite lucrou, sim, mas com a alma penhorada — se é que ainda a possui.
..... João Guató é líder e educador indígena
Nenhum comentário:
Postar um comentário