...ou “ne sutor ultra
crepidam: é uma expressão em latim, que significa, literalmente,
"sapateiro, não [vá] além do sapato", usado para alertar as pessoas a
evitarem emitir ou transmitir algum julgamento que comporte conhecimento além
de sua especialização.”
Na internet encontramos
essa frase com a respectiva história que a fez nascer, séculos atrás, no tempo
de Plínio, O Velho, o qual “registra que um sapateiro (em latim, sutor) que se
havia dirigido ao pintor Apeles, de Kos, com o fim de apontar um [segundo sua
visão, a do sapateiro] defeito na versão artística de uma sandália (latim
crepida, do grego krepis), que Apeles, prontamente corrigiu.”
Até aí, tudo bem para o
pintor, mas depois o sapateiro continuou levantando problemas e a “apontar
outros [supostos] defeitos que ele também considerou presentes na pintura”. Daí
o pintor começou a não gostar. Esse direito que o sapateiro se deu de ampliar
sua perspectiva levou o pintor a aconselhá-lo que “ne supra crepidam sutor
iudicaret” (um sapateiro não deve julgar além do sapato)... e tornou-se um dito
proverbial.
O tempo passou e hoje, dizer algo assim ofende qualquer um, pois temos condições de nos instruir, mesmo não estudando em escolas, ou seja, sem títulos altissonantes, e assim conhecer, inclusive, o sentido de palavras quais: salvaguarda, proteção e defesa do patrimônio.
Os
avanços que a ciência e a comunicação nos proporcionam, hoje, dão condições de
opinar. O conhecimento não ficou resumido a poucos, porquanto, está disponível
para que o busquemos... Ademais, é dinâmico, e requer periódicas revisões e
atualizações.
Francamente, com os
políticos que temos agora, e com os absurdos que ouvimos, não vemos nenhum
intelectual repetir essa frase, mesmo se teria toda razão para fazê-lo.
Pois bem, esse preâmbulo
é para falar do dito “falso histórico” e “reconstrução” de prédios que por
algum motivo, sério ou oportunista, vão ao chão ou desaparecem após um incêndio,
ou qualquer outra calamidade... ou imbecilidade.
Não somente o que fizeram
com a estátua de Borba Gato, mas, guerras, tsunamis, terremotos, atos terroristas,
e atos delinquenciais, até a falta de cuidados com a conservação, etc, destroem
nossa memória histórica. Que fazer? Em vez de levar cada caso à discussão, e
considerar a necessidade de reconstituir um bem, para não perder uma paisagem
consolidada há décadas ou séculos na memória coletiva de sucessivas gerações;
fala-se logo de “falso histórico”.
Com todo o histórico que
tivemos ultimamente sobre destruição do patrimônio mundial, não seria o caso de
discutir esse argumento, com mais liberdade e independência? “reconstrução/reconstituição:
contra ou a favor?” Em vez de impor algo que, francamente, destrói e anula
qualquer memória histórica que se queira salvaguardar, e empobrece o patrimônio
material.
No início do século XX a
torre do Campanário da Basílica de São Marcos, na Praça de São Marcos, em
Veneza, colapsou e ruiu. Iniciou-se uma intensa discussão sobre a solução para
o problema, até o conselho comunal resolver fazer um referendum a respeito da
reconstituição da antiga ou construção de uma nova. O povo decidiu pela reconstituição,
e hoje ninguém nega que aquela torre não é a original...pois faz parte da memória
da cidade, mesmo se refeita. E a sua história é sempre contada a todas as
multidões de turistas.
A Segunda Guerra destruiu
muitos prédios históricos e paisagens urbanas inteiras, como foi com o centro histórico
de Varsóvia (Polônia), que despareceu totalmente..., mas foi reconstruído, e tombado
pela UNESCO como patrimônio mundial histórico e cultural em 1966, e incluído
oficialmente na lista de patrimônios históricos mundiais em 1980. Por que, para
uns sim e outros, não?
Por que incentivar o
desaparecimento de obras históricas? E porque condenar o talento de
profissionais do presente em reproduzir elementos estilísticos pretéritos
relevantes para uma sociedade? O dito “falso histórico” não poderia ser mais
justamente chamado de “reconstrução da história”, em muitos casos?
Hoje, todos temos condições de ler as “Cartas” adotadas pelo ICOMOS, pela UNESCO e outras instâncias oficiais de muitos países, além dos arquitetos e assim tomar conhecimento de decisões a respeito de Conservação, Restauro de Monumentos, e outros documentos básicos relativos à preservação do patrimônio, e formar uma opinião independente a respeito...sem querer ser o dono da verdade absoluta.
Não seria o momento de iniciar
uma discussão sobre a necessidade de revisão e mudança de atitude??? Em 2017 o tema
foi aventado em artigo da UNESCO (https://pt.unesco.org/courier/julho-setembro-2017/reconstrucao-mudar-atitudes).
As decisões do Comitê do Patrimônio Mundial e da UNESCO não tinham começado a refletir uma mudança de atitude quanto à reconstrução? O uso ampliado de atributos intangíveis não chegou a produzir um argumento mais forte a favor da reconstrução?
Aqui em Belém, aquele prédio com paredes externas revestidas de azulejos, situado na esquina da rua Santo Antonio com a trav. Leão XIII, incendiado em 2015, juntamente com aquele do outro lado, há décadas faziam parte da paisagem urbana e da nossa memória histórica coletiva, ambos dentro da área tombada como Centro Histórico.
Independentemente do fato da lei, hoje, não permitir a mesma altura do anterior... este caso podia ser uma exceção, visto sua particularidade histórica e estilística.
A opção feita, em vez, é chocante...ao menos para um “sapateiro” de hoje... alguem com anos de trabalho em terras da Etruria, hoje Bolonha (Italia), acostumada a defesa e salvaguarda de um patrimônio enorme que abrange séculos e séculos de história.
Belém (PA), 05.08.2021
Dulce Rosa de
Bacelar Rocque
2 comentários:
Trabalhei na farmácia Cesar Santos por exatos 25 anos e todos dias era cumprimentado por essas maravilhas e é lamentável que tenhamos aventureiros na prefeitura e na FUMBEL
Este projeto foi aprivado no governo passado do Zenaldo!
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