quinta-feira, 5 de agosto de 2021

“Sutor, ne ultra crepidam”

 

...ou “ne sutor ultra crepidam: é uma expressão em latim, que significa, literalmente, "sapateiro, não [vá] além do sapato", usado para alertar as pessoas a evitarem emitir ou transmitir algum julgamento que comporte conhecimento além de sua especialização.”

Na internet encontramos essa frase com a respectiva história que a fez nascer, séculos atrás, no tempo de Plínio, O Velho, o qual “registra que um sapateiro (em latim, sutor) que se havia dirigido ao pintor Apeles, de Kos, com o fim de apontar um [segundo sua visão, a do sapateiro] defeito na versão artística de uma sandália (latim crepida, do grego krepis), que Apeles, prontamente corrigiu.” 

Até aí, tudo bem para o pintor, mas depois o sapateiro continuou levantando problemas e a “apontar outros [supostos] defeitos que ele também considerou presentes na pintura”. Daí o pintor começou a não gostar. Esse direito que o sapateiro se deu de ampliar sua perspectiva levou o pintor a aconselhá-lo que “ne supra crepidam sutor iudicaret” (um sapateiro não deve julgar além do sapato)... e tornou-se um dito proverbial.

O tempo passou e hoje, dizer algo assim ofende qualquer um, pois temos condições de nos instruir, mesmo não estudando em escolas, ou seja, sem títulos altissonantes, e assim conhecer, inclusive, o sentido de  palavras quais:  salvaguarda, proteção e defesa do patrimônio.

Os avanços que a ciência e a comunicação nos proporcionam, hoje, dão condições de opinar. O conhecimento não ficou resumido a poucos, porquanto, está disponível para que o busquemos... Ademais, é dinâmico, e requer periódicas revisões e atualizações.

Francamente, com os políticos que temos agora, e com os absurdos que ouvimos, não vemos nenhum intelectual repetir essa frase, mesmo se teria toda razão para fazê-lo.

Pois bem, esse preâmbulo é para falar do dito “falso histórico” e “reconstrução” de prédios que por algum motivo, sério ou oportunista, vão ao chão ou desaparecem após um incêndio, ou qualquer outra calamidade... ou imbecilidade.

Não somente o que fizeram com a estátua de Borba Gato, mas, guerras, tsunamis, terremotos, atos terroristas, e atos delinquenciais, até a falta de cuidados com a conservação, etc, destroem nossa memória histórica. Que fazer? Em vez de levar cada caso à discussão, e considerar a necessidade de reconstituir um bem, para não perder uma paisagem consolidada há décadas ou séculos na memória coletiva de sucessivas gerações; fala-se logo de “falso histórico”.

Com todo o histórico que tivemos ultimamente sobre destruição do patrimônio mundial, não seria o caso de discutir esse argumento, com mais liberdade e independência? “reconstrução/reconstituição: contra ou a favor?” Em vez de impor algo que, francamente, destrói e anula qualquer memória histórica que se queira salvaguardar, e empobrece o patrimônio material.

No início do século XX a torre do Campanário da Basílica de São Marcos, na Praça de São Marcos, em Veneza, colapsou e ruiu. Iniciou-se uma intensa discussão sobre a solução para o problema, até o conselho comunal resolver fazer um referendum a respeito da reconstituição da antiga ou construção de uma nova. O povo decidiu pela reconstituição, e hoje ninguém nega que aquela torre não é a original...pois faz parte da memória da cidade, mesmo se refeita. E a sua história é sempre contada a todas as multidões de turistas.

A Segunda Guerra destruiu muitos prédios históricos e paisagens urbanas inteiras, como foi com o centro histórico de Varsóvia (Polônia), que despareceu totalmente..., mas foi reconstruído, e tombado pela UNESCO como patrimônio mundial histórico e cultural em 1966, e incluído oficialmente na lista de patrimônios históricos mundiais em 1980. Por que, para uns sim e outros, não?

Por que incentivar o desaparecimento de obras históricas? E porque condenar o talento de profissionais do presente em reproduzir elementos estilísticos pretéritos relevantes para uma sociedade? O dito “falso histórico” não poderia ser mais justamente chamado de “reconstrução da história”, em muitos casos?

Hoje, todos temos condições de ler as “Cartas” adotadas pelo ICOMOS, pela UNESCO e outras instâncias oficiais de muitos países, além dos arquitetos e assim tomar conhecimento de decisões a respeito de Conservação, Restauro de Monumentos, e outros documentos básicos relativos à preservação do patrimônio, e formar uma opinião independente a respeito...sem querer ser o dono da verdade absoluta.

Não seria o momento de iniciar uma discussão sobre a necessidade de revisão e mudança de atitude??? Em 2017 o tema foi aventado em artigo da UNESCO (https://pt.unesco.org/courier/julho-setembro-2017/reconstrucao-mudar-atitudes).

As decisões do Comitê do Patrimônio Mundial e da UNESCO não tinham começado a refletir  uma mudança de atitude quanto à reconstrução?  O uso ampliado de atributos intangíveis não chegou a produzir um argumento mais forte a favor da reconstrução?


Aqui em Belém, aquele prédio com paredes externas revestidas de azulejos, situado na esquina da rua Santo Antonio com a trav. Leão XIII, incendiado em 2015, juntamente com aquele do outro lado, há décadas faziam parte da paisagem urbana e da nossa memória histórica coletiva, ambos dentro da área tombada como Centro Histórico. 





Independentemente do fato da lei, hoje, não permitir a mesma altura do anterior... este caso podia ser uma exceção, visto sua particularidade histórica e estilística. 


Para reconstituir parte da volumetria original, não teria valido a pena, que tivesse sido aproveitada a parede que restou do sobrado, pelo lado da trav. Leão XIII, como delimitador de gabarito; além da reconstituição das fachadas azulejadas? 

Sabemos que houveram propostas a esse respeito. 


A opção feita, em  vez, é chocante...ao menos para um “sapateiro” de hoje... alguem  com anos de trabalho em terras da Etruria, hoje Bolonha (Italia), acostumada a defesa  e salvaguarda de um  patrimônio enorme que abrange séculos e séculos de história.

 

Belém (PA), 05.08.2021

 

Dulce Rosa de Bacelar Rocque

          Economista com especialização em Direito Público e Programação Economica do Territorio

2 comentários:

Anastácio Trindade disse...

Trabalhei na farmácia Cesar Santos por exatos 25 anos e todos dias era cumprimentado por essas maravilhas e é lamentável que tenhamos aventureiros na prefeitura e na FUMBEL

arteminhas disse...

Este projeto foi aprivado no governo passado do Zenaldo!