domingo, 5 de março de 2023

Modernas paisagens: circulação de artistas e obras de arte na Belém do final do século XIX e início do XX

 

Modernas paisagens: circulação de artistas e obras de arte na Belém do final do século XIX e início do XX


Centros e periferias são classificações móveis, dependem não só do referencial quanto da escala de comparação em que se coloca a discussão. A virada do século XIX para o XX, no Brasil, coincide com o momento em que as instituições e representações artísticas precisaram se renovar em virtude do ambiente federalista que se estabelecia a partir da instituição do regime republicano. Para o Império, o centro era o Rio de Janeiro. Com a República, a capital não deixa de ser centro, mas com a federalização, essa noção torna-se cada vez mais uma discussão e uma construção que irá se travar ao longo de algumas décadas.

E em um país que havia se descentralizado política e economicamente, novos centros artísticos também surgiram, com mais ou menos destaque na história da arte nacional. Não todos ao mesmo tempo, naturalmente. O Pará foi um deles, mas também São Paulo, Pernambuco…

O país estava se modernizando enquanto regime político; em suas formas de pensamento e anseios; em seus meios de comunicação e transporte; em seus gostos e valores; na ciência; na indústria; nas artes e suas práticas. Havia, ainda, uma demanda pela construção de identidades regionais, bem como para registrar todo esse crescimento e modernizações pelo qual as cidades estavam passando. Acompanhando esse processo, a narrativa visual era imprescindível para evidenciar esses novos protagonismos e, nesse contexto, vemos vários artistas, consagrados ou iniciantes, investindo em viagens pelas diferentes regiões do país para comercializar suas obras.

Belém, como capital em processo de modernização e onde circulava muito dinheiro advindo da economia da borracha e do que ela gerou tangencialmente, torna-se um importante mercado de arte e com uma cena artística agitada. Nomes importantes da arte nacional passaram por Belém para expor e artistas paraenses também tiveram suas obras colocadas em trânsito. Um movimento que se reflete muito claramente nas coleções de arte de museus como o MABE (Museu de Arte de Belém) e o MEP (Museu do Estado do Pará), que tem a origem de suas coleções nas compras públicas realizadas a partir de finais do século XIX para ornamentar os prédios públicos da capital paraense.

Montar coleções públicas, promover eventos de arte, bem como o ensino artístico faziam parte desse processo de modernização. Homens de política modernos (sim, pois a política, naquele momento, só era feita por homens, brancos e com posição social), que pensavam e geriam essa modernização também tinham suas atenções voltadas para o papel da arte na educação de um povo que se modernizava, civilizava (termo caro ao período) e, ao mesmo tempo, aburguesava.

O sentido era educar o olhar e pelo olhar, civilizar através da arte, do belo. Os locais para exibição e mesmo comercialização da arte estavam, também, se firmando, se impondo nessa dinâmica de cidade que se construía. A República trouxe um novo impulso; novas ideias, novas instituições, e, com isso, vemos as exposições de arte se legitimando e o colecionamento da arte se expandindo nesse momento de transformação.

Podemos ver um exemplo do que venho falando em uma galeria de retratos de pintores formada em 1908 por Remigio de Bellido, então diretor da Biblioteca e Arquivo Público (hoje, Arquivo Público do Estado do Pará — APEP). Essa galeria era exibida no salão da própria biblioteca (que já era na Travessa Campos Sales, onde se encontra o arquivo) e, por mais que fosse pública, que de fato o era, foi montada exclusivamente por doações, geralmente dos próprios artistas, tanto que muitos são autorretratos. Ao governo cabia apenas arcar com as molduras das telas. Isso dava oportunidade para que não apenas pintores paraenses participassem da mostra, mas, também, aqueles que estavam de passagem pela cidade.

Cito alguns nomes que entraram para a galeria: Pedro Campofiorito, nascido em Roma, radicado no Brasil e que viveu e lecionou em Belém por alguns anos; Oscar Pereira da Silva, nascido no interior do Rio de Janeiro, se estabelece em São Paulo e esteve expondo em Belém; Felix Acevedo, pintor venezuelano que expôs em Belém em 1909; Augusto Barradas, pintor português que esteve em Belém em meados do século XIX; e artistas que viviam e atuavam na cidade, como José Girard e Francisco Estrada.

Hoje, essa coleção faz parte do acervo do MEP e ainda sonho vê-la exposta em sua totalidade…

Assim, por essas coleções temos parte do legado de um tempo e sua visão de mundo, além de podermos identificar as marcas do trânsito de artistas citado aqui. Pinturas de nomes renomados e que expuseram em Belém, por vezes, mais de uma vez, como Aurélio de Figueiredo (de Areia-PB), Antônio Parreiras (de Niterói-RJ), Benedicto Calixto (de Itanhaém-SP), e Theodoro Braga (Belém-PA, mas que morou, estudou e atuou em Pernambuco, Rio de Janeiro, Paris e São Paulo, onde veio a falecer) figuram nos acervos e exposições desses museus, apresentando as marcas dessa circulação e os registros dessa modernidade, posto que alguns deles foram pagos para registrar as mudanças pelas quais a cidade passava.

Esses acervos guardam as imagens dessa Belém moderna que a nossa Belém antiga gerou; guardam as imagens que traduzem o que era ser moderno no início do século XX e que proporcionou tantas questões e questionamentos paras as décadas seguintes. Algumas marcas dessa modernidade são vistas em quadros como o de Antônio Parreiras, encomendado pelo então intendente Antônio Lemos, no qual o calçamento urbano e o poste estão em primeiro plano (com destaque para a iluminação elétrica); ou pelo tema da estação de captação de água pintado por Theodoro Braga. Outras estão no cerne da própria coleção, nos ideais e conceitos de sua origem. Cabe a nós apurarmos o olhar sobre elas. Que tal uma visita aos museus onde essas coleções estão preservadas?

SOBRE A AUTORA

Moema Alves é pesquisadora no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. É doutora em História.


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