sábado, 12 de fevereiro de 2022

CIDADE VELHA: AMOR OU APENAS FETICHE?

 

Quem vive há tempos na Cidade Velha, tem lembranças que muitos nem imaginam, principalmente quando se fala de problemas.

A CIVVIVA, com seu livro CIDADE VELHA CIDADE VIVA publicado em 2008, salvou um bocado da memória que estava se perdendo. Através de entrevistas e narrativas de quem viveu no bairro, descobrimos quem a ama; como a ama; quanto a amam... Outras memórias, com certeza, estão trancadas em algum armário, dentro de teses que mestres e doutores escreveram mas não deram oportunidade a outros de ler.

É o caso de começar lembrando que a parte tombada da Cidade Velha tinha três ruas que acabavam na beira do rio. Pouco a pouco e por prepotências de diferentes tipos, elas foram sendo fechadas. A última tentativa, foi feita há uns dez anos, mas aquela cidadania que gosta do bairro não ficou de mãos cruzadas e impediu que isso se concretizasse.  Após vários embargos conseguimos que a ex-travessa da Vigia ficasse aberta a todos aqueles que, em algum modo, conseguem, hoje, chegar até à beira do rio.

Na Joaquim Távora, num casarão na beira do rio, morava a minha professora Terezinha Cardoso. Nos idos dos anos 50 do século passado, me deu aulas no Grupo Rui Barbosa, situado atrás da igrejinha do Landi, no antigo Largo de S. João. Um belo dia ela resolveu se apropriar da rua onde morava, visto que as casas já, ali, eram de propriedade de sua família, e fechou-a impedindo o uso público....e ninguem tomou providências para que isso não se concretizasse.

 A travessa D. Bosco também acabava na beira do rio, onde o Paissandú tinha uma trapiche que avançava para rio, com bancos de cada lado dele. Ao entardecer, esses bancos eram ocupados por mães de família que, com seus filhos pequenos vinham apreciar o por do sol... Essa ponte-trapiche  acabava com um tablado de madeira. Ali atracavam suas barcas os proprietários que moravam na Cidade Velha: eram, principalmente transportadores de gado do Marajó para ser abatido pela SOCIPE (Cooperativa Da Indústria Pecuária Do Pará Ltda).

Paralelamente a essa realidade tínhamos o Clube do Remo, o Recreativa e a Tuna Luso, com  suas sedes náuticas (ou garagens) na Siqueira Mendes. A do Paissandú, em vez, ficava na dobra da rua, em frente a igreja do Carmo. Do lado  da igreja tinha uma balaustrada que foi vendida e ali foi feito um posto de gasolina, o  Posto Brilhante, paralelo ao trapiche do Paissandú. 

Duas versões se ouvem a respeito  desse Posto, sobre um sinistro alí ocorrido. Uma delas conta de um incêndio nos anos 70 na firma Moto Geral, onde hoje funciona o Fórum Landi, que, por causa da mudança na direção dos ventos, não chegou aos tanques de gasolina do posto. A outra versão é que o incêndio foi no posto Brilhante... Naquela margem do rio, hoje chamada Beco do Carmo, nasceu pouco  a pouco uma palafita ocupada por pessoas de Igarapé Miri, terra de origem do vigia do Posto, após a perda do trabalho...e ninguem impediu seu crescimento.

A parte os clubes que tinham suas sedes secundárias na Siqueira Mendes, as empresas de navegação alí situadas, levavam e traziam, não somente estudantes de Abaetetuba, Baião, Barcarena, Cametá, Igarapé–Miri, Mocajuba, Mojú e outras localidades, mas também  ribeirinhos necessitados de tudo aquilo que precisam para cuidar da terra e dos po-po-pós. Velas, remos, anzóis, ferramentas várias, motores, bombas, roçadeiras, motosserras, cortadores de grama, enfim todos os produtos necessários para cuidar da casa, do jardim, do quintal e do po-po-pó se encontra ainda nas ruas perto da beira do rio, assim como materiais de construção e azulejaria.


Seguindo a orla do rio chegamos a outros portos e principalmente ao abandonado Porto do Sal onde muitos anci
ães lembram do peixe comprado na quinta-feira para ser comido na sexta. A beirada aumentou com aterros que chegaram até a Tamandaré. Casas, prédios, bares, restaurantes e até motéis, apareceram alargando a orla sem algum impedimento, enquanto o Porto do Sal continua ignorado...

As calçadas  de liós, muitas delas cobertas de cimento a causa do aumento do asfalto  no leito da rua, continuam no esquecimento, apesar de serem tombadas. Quem pensa nas necessidades dos cidadãos com impedimentos e das mães que não conseguem sair com seus filhos em carrinhos de bebes??? Não somente porque estão quebaradas mas, também, por servirem de estacionamento para funcionarios públicos e clientes dos orgão situados na área tombada. Será que ninguem vê isso?

Quem se aproxima hoje da Cidade Velha o faz por quê? Para mudar a cor das casas? Para encher de bares ou restaurantes sem estacionamento? Para aumentar o  numero de veiculos que favorecem a trepidação? Para infernizar a vida e os costumes dos moradores? Para dificultar mais ainda a vida dos ribeirinhos? Para ignorar também e mais ainda as leis da convivência civil? É como se não estivessem satisfeitos com ela e a querem mudar... mas a salvaguarda da nossa memória, prevista em lei, que fim leva?

Hospitais e escolas superiores, continuaram a ficar longe dos moradores da área tombada e dos ribeirinhos das 40 ilhas que fazem parte de Belém. Os herdeiros de prédios na área tombada, continuam impossibilitados de concretizar suas vendas com tanta burocracia... Alguem pensa/estuda o  uso capião para vir em ajuda de quem quer comprar casas e evitar tanto abandono?

A CIVVIVA tenta desde 2007 lembrar as leis que são ignoradas, sem muitos resultados: entra e sai governo e as leis continuam somente no papel. Um projeto geral para o Centro Histórico /área tombada, discutido com quem mora na área, como prevêem várias normas em vigor, ninguem propõe. 


A Cidade Velha tem um valor concreto para alguns..., para outros é fetiche, tesão, mas amor e respeito, bem pouco.


2 comentários:

Unknown disse...

Confesso que me vieram lágrimas aos olhos. Esta indignação exposta no texto, de forma ainda polida, é um sentimento geral e patente nos moradores da Cidade Velha. Existe um FETICHE dos governantes, visitantes, "usadores" das ruas e prédios e mesmo de seus "admiradores" que NÃO HABITAM AQUI. Um fetiche que ignora leis, suas ineficácias ou mesmo mesmo a falta de leis que nos ajudem a sobreviver dentro da nossa realidade.
Entre demagogias e falácias; leis ignoradas ou inúteis, entre vacatio legis e órgãos engessados, distantes e inoperantes, entre bares, pagodes, bregões, calçadões para inglês ver e a sensação de desalento; a Cidade Velha respira. Dentro de nossas casas existem vidas, sonhos, esperanças, felicidades e um pouco de tristeza. A Cidade Velha é viva. E viva, estrebucha, briga, resiste, vai ao fundo do poço do abandono e volta, volta e esfrega na cara de seus "usadores" e "defensores" a sua vida, as nossas vidas. Como uma VELHA RABUGENTA calejada e ensinada pela vida a Cidade Velha tripudia ante ao abandono, o descaso, as demagogias e o desalento.
NÓS ESTAMOS VIVOS. A CIDADE VELHA É VIVA!!!

Marcio Pinto Martins Tuma disse...

Excelente o texto do artigo.